Em
março de 2004 realizou-se um ciclo de conferências no Palácio das Artes, em
Belo Horizonte. Uma temática instigante: "Muito além do espetáculo".
Para registrar a influência, toda a reflexão sobre a imagem e o espetáculo é
oriunda de um livro essencial: A sociedade do espetáculo – Comentários sobre a
sociedade do espetáculo, de Guy Debord (Editora Contraponto, Rio de Janeiro,
2000). Participaram intelectuais brasileiros e estrangeiros: Adauto Novaes,
Eugênio Bucci, Jorge Coli, Nelson Brissac Peixoto, Evgen Bavcar, Maria Rita
Kehl etc. Cada qual em seu campo específico, dissertaram sobre a cultura da
imagem e a sociedade do espetáculo e os novos e inquietantes desafios
contemporâneos.
Alguns
chamam esta contemporaneidade de pós-modernidade, talvez daí derivasse o título
do ciclo de conferências (Muito além = pós). Aliás, parece que tudo hoje é pós.
Pós-isto, pós-aquilo (neologismos com hífens). O que desperta questionamentos
de toda ordem, pois vivemos num tempo complexo, mesclado de espetáculos
naturais e artificiais, interdisciplinaridades, influências de todas as partes,
e imersos num mundo de culturas híbridas (pensamento complexo e cultura híbrida
são termos de Edgard Morin).
Mas
esta é uma discussão de grande dimensão. Fica para outra oportunidade. Pois
bem, voltando ao ciclo de conferências, lá pelo terceiro/quarto dia, eis o meu
espanto: menos de 10% dos participantes (talvez nem isso) conheciam o livro de
Guy Debord. Averigüei esta situação sentando em locais diferentes, dia após
dia, e perguntando aos participantes se tinham ouvido falar do autor. Um
comportamento até certo ponto meio cara-de-pau, mas valeu a amostragem.
Observei também que a organização do evento não observou uma demanda básica e
potencial em torno do livro, pois havia pessoas de áreas distintas de
conhecimento e interessadas no assunto. No fim das contas, somente Eugênio
Bucci tangenciou, em premissas básicas e conclusões apressadas, o livro de
Debord.
Terminado
o ciclo, bateu uma vontade danada de descrever alguns momentos e divulgar este
livro que eu considero importante, atual e duma inestimável validade e ajuda
nas reflexões deste mundo contemporâneo individualista e globalizado. De tão
importante eu o utilizo na confecção de outro livro, que está em curso para a
publicação no campo da comunicação. Mas, vamos à resenha, só completada
recentemente.
O
livro e suas influências
A
gênese do pensamento contemporâneo sobre a questão do espetáculo tem suas
raízes no pensador situacionista pós-marxista francês Guy Debord (1931-1994) e
em seu livro. A primeira parte – A sociedade do espetáculo – foi escrita em
1967. O livro e a Internacional situacionista (com suas derivas e intervenções
urbanas, ordenando o cenário material da vida, seu caráter e o papel
"público" de romper a identificação psicológica dos indivíduos,
instigando-os a agir contra qualquer tipo de opressão do sistema) foram
importantes instrumentos de pensamento e ação dos estudantes, na França, em maio
de 1968. O caráter contestatório da obra de Debord incita a todos, numa luta
acirrada contra a perversão da vida moderna, que prefere a imagem e a
representação ao realismo concreto e natural, a aparência ao ser, a ilusão à
realidade, a imobilidade à atividade de pensar e reagir com dinamismo. O
pensador contemporâneo Jean Baudrillard também sofreu influência das idéias de
Debord.
O
ponto de partida do livro é uma crítica ferina e radical a todo e qualquer tipo
de imagem que leve o homem à passividade e à aceitação dos valores
preestabelecidos pelo capitalismo. Para o filósofo, cineasta e ativista
francês, a sociedade da época estava contaminada pelas imagens, sombras do que
efetivamente existe, onde se torna mais fácil ver e verificar a realidade no
reino das imagens, e não no plano da própria realidade. Servindo-se de
aforismos, no primeiro deles Debord afirma que "toda a vida das sociedades
nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa
acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma
representação". Ou seja, pela mediação das imagens e mensagens dos meios
de comunicação de massa, os indivíduos em sociedade abdicam da dura realidade
dos acontecimentos da vida, e passam a viver num mundo movido pelas aparências
e consumo permanente de fatos, notícias, produtos e mercadorias.
A
sociedade do espetáculo é o próprio espetáculo, a forma mais perversa de ser da
sociedade de consumo. Como bem observa José Arbex Jr. no livro Showrnalismo: a
notícia como espetáculo(Editora Casa Amarela, São Paulo, 2001):
"O
espetáculo – diz Debord – consiste na multiplicação de ícones e imagens,
principalmente através dos meios de comunicação de massa, mas também dos
rituais políticos, religiosos e hábitos de consumo, de tudo aquilo que falta à
vida real do homem comum: celebridades, atores, políticos, personalidades,
gurus, mensagens publicitárias – tudo transmite uma sensação de permanente
aventura, felicidade, grandiosidade e ousadia. O espetáculo é a aparência que
confere integridade e sentido a uma sociedade esfacelada e dividida. É a forma
mais elaborada de uma sociedade que desenvolveu ao extremo o ‘fetichismo da
mercadoria’ (felicidade identifica-se a consumo). Os meios de comunicação de
massa – diz Debord – são apenas ‘a manifestação superficial mais esmagadora da
sociedade do espetáculo, que faz do indivíduo um ser infeliz, anônimo e
solitário em meio à massa de consumidores’".
Desta
maneira, as relações entre as pessoas transformam-se em imagens e espetáculo.
"O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre
pessoas, mediada por imagens", argumenta Debord. O consumo e a imagem
ocupam o lugar que antes era do diálogo pessoal através da TV e os outros meios
de comunicação de massa, publicidades de automóveis, marcas etc. e produz o
isolamento e a separação social entre os seres humanos. Por exemplo, a questão
da droga será tratada na TV (algumas telenovelas brasileiras mais recentes
abordaram tal assunto), e não no seio familiar. Ocorre aí uma devastadora inversão
da noção de valores. O espetáculo se constitui a realidade e a realidade o
espetáculo. Já não se tem um limite definido para as coisas.
Efeito-sanduíche
Com a
presença incessante dos meios de comunicação de massa, o homem passa a ser e a
viver uma vida sonhada e idealizada, na qual a ficção mistura-se à realidade, e
vice-versa, incorporando-se à realidade vivida pelo indivíduo (interessante
citar, e tudo leva a crer que, a partir das idéias de Debord, Eugênio Bucci
apresenta as cinco leis não escritas – não explicitadas – da televisão
brasileira no livro Brasil em tempos de TV, da Boitempo Editorial, 1997, entre
elas o efeito-sanduíche realidade-ficção/ficção-realidade, pelo qual os
telejornais (reino da realidade) se organizam como melodramas (reino da ficção)
e as novelas (reino da ficção) vão se alimentar no reino da realidade. O reino
da notícia bebe no da ficção, e vice-versa, produzindo um entendimento parcial,
fragmentado, e nunca pleno do mundo dos acontecimentos.
Num
desdobramento, este esquema perpassa toda a programação da televisão,
principalmente no horário noturno. O esquema é o seguinte: um programa
alicerçado no real (noticiário, documentário, grandes reportagens) e em seguida
outro no reino da ficção (novelas, filmes etc.), e por aí vai se alternando.
Debord, enfaticamente, observa que esta imagem manipulada da realidade pelos
meios de comunicação de massa faz com que o reino das emoções (raiva,
felicidade etc.), assim como a justiça, a paz e a solidariedade, sejam
apresentadas como espetáculo. Os meios de comunicação de massa criam a partir
daí uma realidade própria para que a sociedade se solidarize e crie novos
critérios de julgamento e justiça conforme seus conceitos manipuladores.
Estas
novas tecnologias no campo da informação agem na capacidade de percepção dos
indivíduos e dificultam a representação do mundo pelas atuais categorias
mentais. A sociedade transforma-se numa sociedade do espetáculo, na qual a
contínua reprodução da cultura é feita pela proliferação de imagens e mensagens
dos mais variados tipos. A conseqüência é uma vida contemporânea super-exposta
e invadida pelas imagens, operacionalizando um novo tipo de experiência humana,
caracterizada por um modo de percepção que torna cada vez mais difícil
separar-se ficção de realidade.
A
mídia, principalmente a televisiva, passa então a atuar de maneira decisiva na
definição das agendas e dos temas que norteiam todo o processo cultural e
social relevantes. Como observa Debord, "o conceito de espetáculo unifica
e explica uma grande diversidade de fenômenos aparentes. Sua diversidade e
contrastes são as aparências dessa aparência organizada socialmente, que deve
ser reconhecida em sua verdade geral. Considerado de acordo com seus próprios
termos, o espetáculo é a afirmação da aparência e a afirmação de toda a vida –
isto é, social – como simples aparência. Mas a crítica que atinge a verdade do
espetáculo o descobre como a negação visível da vida; como negação da vida que
se tornou visível".
O
ambiente é o da manipulação, onde o homem acaba sendo governado por algo que
ele próprio criou. Relembrando McLuhan, "os homens criam as ferramentas,
as ferramentas recriam os homens". A visão de mundo já é de outra ordem e
natureza. Como afirma Debord:
"Quando
o mundo real se transforma em simples imagens, as simples imagens tornam-se
seres reais e motivações eficientes de um comportamento hipnótico. O
espetáculo, como tendência a fazer ver (por diferentes mediações
especializadas) o mundo que já não se pode tocar diretamente, serve-se da visão
como sendo o sentido privilegiado da pessoa humana – o que em outras épocas
fora o tato; o sentido mais abstrato, e mais sujeito à mistificação,
corresponde à abstração generalizada da sociedade atual. Mas o espetáculo não
pode ser identificado pelo simples olhar, mesmo que este esteja acoplado à
escuta. Ele escapa à atividade do homem, à reconsideração e à correção de sua
obra. É o contrário do diálogo. Sempre que haja representação independente, o
espetáculo se reconstitui".
Concentrado
e difuso
Debord
caracteriza o espetáculo de dois tipos: o concentrado e o difuso. Ambos,
centrados na noção de unificação feliz e, posteriormente, acompanhado de
mal-estar, desolação e pavor. O tipo concentrado é essencialmente burocrático e
ditatorial. Uma situação típica do tipo concentrado de espetáculo advém dos
antigos regimes comunistas, em que o Estado impunha a identificação popular
pelo espetáculo e com isso escondia-se a verdadeira realidade socioeconômica.
Outro exemplo: a hegemonia dos atletas alemães orientais e soviéticos nas
Olimpíadas das décadas de 1960 e 1970. Com suas conquistas garantiam
internamente a imagem de uma suposta supremacia da ordem estabelecida sobre uma
outra exterior – o triunfo maquiando os eventuais desgastes do regime em
relação a outras realidades no campo de direitos humanos, alimentação e
trabalho.
Atualmente,
Cuba é um exemplo clássico deste tipo de espetáculo concentrado. Não devemos
esquecer do Brasil pós-1964, com slogans e lemas político-propagandísticos como
"Brasil, ame-o ou deixe-o" e "Este é um país que vai pra
frente", cantados, reproduzidos nas rádios e TVs, usados pelos militares
para consubstanciar e silenciar as atrocidades cometidas e a inoperância,
mascarada de milagre econômico, à custa de endividamento externo estrondoso. O espetáculo
difuso está presente em regimes mais democráticos, onde a superprodução de
mercadorias em marcas variáveis induz e garante uma aparente "poder de
escolha", entretanto fazendo crer que os indivíduos vivam num reino falso
da "liberdade de escolha".
Posteriormente,
em 1988, Guy Debord retoma a discussão em Comentários sobre a sociedade do
espetáculo. Ampliando a temática, reconhece que o domínio do espetáculo é o
grande vencedor e integrador de toda a sociedade: tudo o que se apresenta aos
cidadãos e consumidores somente pode ser confirmado, cada vez mais, pelas
imagens e o marketing, tendo o público de certa forma de confiar naquilo que
foi "criado" para ele. Ou seja, o critério da verdade e da validade
da realidade é tudo aquilo que foi noticiado. Se a mídia em geral não noticiou
e nada foi comentado em público sobre determinado acontecimento, as pessoas
tornam-se céticas quanto à veracidade da informação. Por mais que tenham
vivenciado determinado acontecimento, fica no ar a pergunta: "Será que isso
realmente aconteceu?" Em outras palavras, se o fato não foi noticiado,
divulgado, não teve registro imagético, não deve ter acontecido. É a realidade
transformada em imagem, o espetáculo, em realidade. É o reino do espetáculo
suplantando a realidade. Reiterando, se o fato não apareceu na TV e jornais,
não aconteceu.
Como
confirma Debord, "no plano das técnicas, a imagem construída e escolhida
por outra pessoa se tornou a principal ligação do indivíduo com o mundo que,
antes, ele olhava por si mesmo, de cada lugar aonde pudesse ir. A partir de
então, é evidente que a imagem será a sustentação de tudo, pois dentro de uma
imagem é possível justapor sem contradição qualquer coisa. O fluxo de imagem
carrega tudo: outra pessoa comanda a seu bel-prazer esse resumo simplificado do
mundo sensível, escolhe aonde irá esse fluxo e também o ritmo do que deve aí se
manifestar, como perpétua surpresa arbitrária que não deixa nenhum tempo para a
reflexão, tudo isso independe do que o espectador possa entender ou pensar".
Total
desinformação
Uma
conseqüência séria, segundo Debord, é a total desinformação da sociedade. Não a
desinformação como negação da realidade, e sim um novo tipo de informação que
contém uma certa parte de verdade, o qual será usado de forma manipulatória.
"Em suma, a desinformação seria o mau uso da verdade". E, o mundo da
desinformação é o espaço onde já não existe mais o tempo necessário para
qualquer verificação dos fatos.
Assim,
analisa Debord, "ao contrário do que seu conceito espetacular invertido afirma,
a prática da desinformação só pode servir o Estado aqui e agora, sob a sua
direção direta, ou por iniciativa dos que defendem os mesmos valores. De fato,
a desinformação reside em toda a informação existente; e como seu caráter
principal. Ela só é nomeada quando é preciso manter pela intimidação, a
passividade. Quando a desinformação é nomeada, ela não existe. Quando existe,
não é nomeada".
Esta
nova sociedade do espetáculo e desinformação, de acordo com o autor, é o
universo, onde tudo é possível. Um grande carnaval caracterizado pelo
desaparecimento de critérios de verdade e validade, que antes eram
referenciados em atitudes e funções específicas desempenhadas no mundo do
trabalho. Neste contexto, por exemplo, um médico pode ser cantor e ator ao
mesmo tempo, e aparecer na televisão defendendo o uso de determinado produto,
marca ou remédio de ponta, de determinado laboratório, como sendo o mais eficaz
contra determinada doença, fratura ou inflamação. Bem como pode aparecer também
em programas de auditório e novelas, garantindo e corroborando o status
científico, e a noção do bom e do belo, do asséptico e o efeito dourado de
bem-estar do produto para a saúde dos consumidores e cidadãos. Este seria um
outro novo aspecto que alimenta e afirma que o espetáculo não pode parar, e que
todos podem um dia ter a possibilidade, nem que seja em 15 minutos de fama, de
se tornarem artistas e aparecer na televisão.
Desta
maneira, parte da modernidade e a época atual são a sociedade do espetáculo, do
consumo e da fragmentação. E, de acordo com as idéias de Debord, apocalípticas,
extremistas, impiedosas e lúcidas em seus julgamentos, esta sociedade é a
negação da própria humanidade, que em sua plenitude procura um certo tipo de
felicidade em meio ao esfacelamento da capacidade de liberdade de escolha, já
totalmente preenchida em seu imaginário pela satisfação garantida, a partir de
um real fabricado, que finca e irradia os seus espectros num mundo cada vez
mais saturado pelas imagens.