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segunda-feira, 27 de abril de 2009

O privilégio da culpa

Alvaro Acioli

O homem sempre afastou o agora vivido, em benefício do depois, dos futuros idealizados, completamente magnetizado com as possibilidades transformadoras que projetava no amanhã. Agindo dessa forma foi levando a sua vida sem medir sacrifícios. Esteve sempre disposto a aceitar as penas e castigos que lhe eram impostas. Nos momentos mais críticos confortava-se com a idéia de que o sofrimento, além do efeito purificador, aumentava a sua capacidade de compreender e aceitar, de reconhecer e descobrir, indispensáveis para a sua caminhada. Na mesma linha ele se deixou acalentar, também, com a tranqüilizadora ilusão de que todos os seus esforços seriam reconhecidos. Em sua ingenuidade achava que a recompensa poderia tardar, mas não faltaria. Receberia os prêmios merecidos, durante o transcurso de sua existência ou, em última instância, logo depois que ela acabasse. Não foi por falta de inúmeras e renovadas advertências que ele eternizou, perigosamente, essa idéia fantasiosa. Talvez fosse a única maneira de conformar-se, frente aos tropeços e dificuldades que lhe atingiam. Mas apesar de sua resignação, nunca deixou de ser acusado de ser o maior responsável pelos males que padecia. E um fato confirmava essa hipótese. Apesar de todas as suas descobertas e dos seus progressos, no campo da técnica e no domínio das idéias, ele nunca conseguiu controlar o seu comportamento primitivo, a sua selvageria. Essa incapacidade acabou se transformando no maior drama de sua vida. Foi sempre tido como o único responsável por seu temperamento agressivo. Aconselhou-se, sem sucesso, com muitos sábios. As instituições procuradas voltaram-lhe as costas.Para os sábios e as instituições ele era o único responsável pela imprevisibilidade de seu comportamento. A completa submissão era o preço exigido pela proteção que buscava. Além de humilhar-se ele tinha de aceitar, sem discussão, a culpa por suas próprias incapacidades inatas e pelos absurdos que sua mente produzia. As conversas mantidas com os sábios acabaram multiplicando suas dúvidas. Pensava compulsivamente. Qual a besta selvagem que devia ser controlada : ele ou o animal? Seria razoável relacionar sua animalidade com todo o mal que espalhava ? O que estava afinal impedindo o seu auto-conhecimento? Diga-se, a bem da verdade, que durante muito tempo o homem aceitou resignadamente o descrédito e os castigos que lhe foram impostos. Mas depois de muito tempo,acabou achando que estava sendo injustiçado. Rebelou-se. Contestou os sábios e as instituições. Protestou inocência sem lograr qualquer resultado prático. A selvageria nasceu com ele, estava ligada à sua animalidade, diziam todos. E insistiam proclamando que só um grande processo de purificação poderia salvá-lo desse estigma original. Era culpado pelo que fez e pelo que deixou de fazer. Pelos males que descobriu. Por toda a sua angústia. Por sua curiosidade. Por ter tentado sair das trevas e buscado a luz. Pela audácia de querer desvendar o desconhecido. Culpado também por ter nascido. As acusações proferidas foram tantas que acabaram despertando nele uma reação paradoxal. De humilhado passou a sentir-se distinguido, privilegiado pelo excesso de culpas. A violência contra ele era uma mera conseqüência da sua importância existencial. Essa percepção milagrosa mudou completamente a sua forma de sentir-se. Ser o alvo principal das culpas, era uma distinção, um verdadeira honraria, um motivo para orgulhar-se e não para sofrer. Sem a condenação das culpas o homem não se acusaria com a freqüência e a intensidade habituais. E, consequentemente, teria mais chances de alcançar a paz e o auto-conhecimento. Desde essa percepção redentora o homem passou a examinar sem pressa, com mais atenção e cuidado, todas as acusações com que era premiado. E quanto às culpas, passou a saboreá-las como se degustasse as mais finas iguarias, de um banquete imperial.
http://aciolireunidos.blogspot.com/2008/04/o-privilgio-da-culpa.html