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quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Educar, condicionar ou punir ? Problematizar - pensar os caminhos da educação para um outro mundo possível.

Flávia Schilling
Professora Doutora
Faculdade De Educação – Usp

É grande a alegria por estar com vocês, neste encontro que tem por grande
título a “educação cidadã numa cidade educadora”.
Tentarei exercitar o que considero ser a nossa principal função neste encontro:
quem sabe conseguir ser uma “boa perguntadora”. Só assim poderemos
começar a ensaiar algumas respostas (com certeza nunca definitivas) mas que
nos aproximem da proposta de pensar uma educação para um outro mundo
possível.
Penso que no título proposto para este painel há profundamente colocada uma
questão central na atualidade: a disputa pelo sentido das palavras. Quem
consegue criar novos sentidos para uma palavra? Em princípio as crianças; os
poetas; os estrangeiros (quem sabe os “estranhos” aqueles que “estranham”
pois não dominam os códigos, não estão neles submersos) e, quem sabe, nós,
os pesquisadores, inquietos por definição?
Participei de outro encontro que propunha discutir esta mesma relação:
construir a escola, construir a cidade. Esta é a relação fundamental. Minha
problematização começa, então pelo título maior do encontro. Pois, verificamos
sem dúvidas, que as cidades sempre são educadoras. São Paulo, por exemplo,
nos educa:
- a não sair de casa
- a não falar com estranhos
- não cuidar de crianças perdidas na rua....
Nos constrói, diariamente, infinitesimalmente, como cidadãos isolados,
atemorizados, indiferentes. Nos condiciona e nos pune: nos educa.
Nesta cidade educadora na sociedade da insegurança, há punições e
condicionamentos quando tentamos agir de outra forma. É o desgaste de
enfrentar o trânsito infernal, a imprevisibilidade dos encontros. Pois trata-se de
cidade na sociedade da INSEGURANÇA, que acontece em um mundo que vive
em torno do sentimento de insegurança: basta lembrar a quantidade de verba
que se gasta na “prevenção da violência, nas seguranças particulares, nas
prisões”. Citando Jacques Rancière: “o sentimento de insegurança não é uma
crispação arcaica devida a circunstâncias transitórias. É um modo de gestão dos
estados e do planeta para reproduzir e renovar em círculo as próprias
circunstâncias que o mantêm” Diz o autor citado: A INSEGURANÇA É UM
MODO DE GESTÃO DA VIDA COLETIVA. 1
E a escola está neste mundo. Nesta cidade. Daí que “construir a cidade,
construir a escola”, pensar na educação em uma “cidade educadora” (diferente
daquela descrita) seja o grande desafio.
Portanto, como aqui se trata de pensar em outro mundo possível, qual é a
cidade e qual é a educação que queremos? Pensar a cidade, pensar a
educação. Construir a cidade, construir a educação.
É dentro desta introdução que pretende compartilhar com vocês minha reflexão
sobre o tema proposto:
Fiz duas leituras sobre o título, sobre a relação possível entre “educar,
condicionar ou punir? “
1 Jacques Rancière, “O princípio de insegurança”, Folha de São Paulo – MAIS, 21/09/2003, p.3.
Este título proposto, com sua ambigüidade, mostra que há uma disputa entre
os sentidos dados ao termo “educar”.
Quando educar é condicionar e punir
A primeira reflexão que fiz: em todo sistema de educação há
condicionamento e há punição. Há um sistema de regras que, quando
violado, gera punições. São sistemas mais ou menos claros, de
condicionamento – regras e normas e sistemas de punições mais ou menos
explícitos. Estas formas de condicionamento e punição acontecem no
contexto da “cidade” – a educação e a cidade não se separam.
A Arquitetura expressa de maneira muito interessante estes sistemas de
condicionamento e punição que existem na educação. O que podemos
observar: Como se implanta a escola (que materializa a educação em nossa
cidade) na cidade, como se fecha à cidade, a nega ou se abre à cidade?
Como, internamente, se compartimenta? Como contém o aluno? As carteiras
escolares, o mobiliário escolar, a posição das pessoas na sala de aula,
refletem estas normas e condicionamentos.
Em todo sistema de educação há punições mais ou menos ferozes: físicas e
morais, humilhação, vergonha, indiferença. principalmente, baixa
expectativa sobre o aluno. Quem condiciona e quem pune na educação?
Não apenas os professores: os alunos, entre si, estabelecem sistemas de
regras de comportamento e quem não se adapta é punido. Os castigos são
o isolamento, o ostracismo, a ridicularização, os apelidos, a humilhação.
Quero que fique claro que estou falando de forma ampla sobre “educação”
e sua materialização na “educação formal e escolar”. Não há, de fato,
grande oposição entre o sistema público e o particular nestes mecanismos
de condicionamento e punição, ao mesmo tempo em que há muitas
experiências de educação tanto em escolas – públicas e privadas, muitas
experiências excelentes. Da mesma forma, há problemas tanto nas públicas
quanto nas particulares.
E hoje, como fica a educação, com seu conteúdo de condicionamento e
punição na sociedade da insegurança? Vê-se, a partir de pesquisas e relatos
sobre cotidiano escolar, dois grandes operadores atuando: a discriminação e
a indiferença.
Uma pesquisa realizada por jovens ligados ao projeto social do CESOMAR,
sobre violência, levanta que a maior violência, para os jovens, é a
discriminação na escola. Mencionam, em primeiro lugar, em sua lista sobre
as violências, a discriminação que acontece nas Escolas e Faculdades. A
discriminação é vista como a grande violência pois é a que nega o projeto,
impede o acesso a um futuro sonhado. É a que acontece estruturalmente
nas instituições, em seu exercício de excluir, de criar aqueles que
fracassarão, que serão “despejados”. Seu operador é a discriminação. “Ele é
pobre mesmo, não precisa de estudo”. “É favelado, não tem família...não
tem futuro”. Esta é uma condenação precoce que a escola faz. O primeiro
ponto levantado é, portanto, a violência do preconceito, a violência da
discriminação: que afeta os mais pobres, mas também os que são gordos,
mais ou menos “feinhos”, diferentes. Refletindo a tirania dos modelos na
atualidade.
Outro exemplo de violência aparece sob a denominação de “indiferença”.
Citarei um trecho de uma dissertação de mestrado defendida na FEUSP, por
Eike Frehse. A autora relata uma atividade que desenvolve com dois alunos
que estavam “bagunçando” e haviam sido retirados da sala de aula pela
professora. Propõe uma redação sobre a “melhor coisa que aconteceu na
minha vida. “Um dos dois respondeu dizendo: “Eu já sei, vou escrever sobre
o dia mais triste da minha vida”, e começou a redigir. Em 15 minutos uma
página e meia estavam tomadas por palavras, frases e parágrafos. (...)
Lemos o texto em voz alta e fizemos as correções necessárias. A história
versava em detalhes sobre o dia em que seu irmão fora baleado em frente à
sua casa após voltar da escola e acabara morrendo nos braços do rapaz
que agora escrevia a respeito do ocorrido. Concluída a tarefa, o aluno
entregou o trabalho para a professora responsável, No entanto,
aparentemente a redação não agradou. A docente comentou com as
colegas na sala de aula: “Olha só que absurdo. O menino fica aí duas horas
só para escrever apenas uma página e meia? Realmente estes alunos não
fazem nada...” 2 O que aconteceu? O que se pode concluir desta pequena e
lamentável história? De, o que foi dito é: de que vale a tua história? Tua
história não interessa. Porém, como poderemos viver em sociedade sem
construir narrativas comuns sobre nossa história, sobre nossas histórias?
Isto é algo que aparece não apenas em algumas escolas publicas, mas
também nas particulares: poucas são as que ouvem, que são capazes de
“desemparedar a palavra”.
A tirania dos modelos e o silenciamento – a discriminação e a indiferença -
são operadores do condicionamento e da punição na educação.
Nesta primeira reflexão, não haveria oposição entre os termos propostos:
toda educação comporta um sistema de condicionamento e de punição.
Percebe-se que a educação é um sistema que dialoga estreitamente com os
sistemas de punição formais – neste caso há escolas e há sistemas de
educação que servem para manter a pobreza pobre e a elite enclausurada e
ignorante do mundo em que vive, isolada em seu pequeníssimo mundo.
Neste caso, a educação tem um papel ativo na determinação de quem será
o usuário do sistema prisional, caso transgrida a ordem. Neste caso, temos
a educação – na prática das escolas – reproduzindo a sociedade e sua
desigualdade. reproduzindo sua riqueza do jeito que é e sua pobreza do
jeito que é, com seus crimes específicos.
Quando educar é construir narrativas sobre a nossa história
2 FREHSE, Eike. Democratização em xeque. Vicissitudes da progressão continuada no ensino
paulista em 1999. Dissertação de Mestrado, FEUSP, 2001, p. 103
A segunda possibilidade é que, talvez, educar seria uma alternativa ou algo
muito diferente de condicionar ou punir. Haveria uma tensão e um conflito que
oporia educar a condicionar ou punir. Educar teria um outro sentido. Esta
oposição pode ser traduzida pela frase: mais escolas, menos prisões. Neste
caso educar seria uma alternativa para os outros dois termos levantados pela
organização do Fórum.
Algumas histórias servem para ilustrar esta possibilidade da educação, que, por
definição, amplia, quebra a indiferença, permite que tornemos o mundo nosso
mundo.
Lembrei-me, estes dias, tanto dos quarenta anos do golpe militar, como dos 20
anos das “diretas-já”. Lembrei-me, quando escrevia estas linhas que me
ajudariam a me organizar neste encontro, de fato ocorrido em 1964, do DOPS
que, em minha casa, levou livros da biblioteca. Estes livros eram: “Vermelho e
Negro”, “Crime e Castigo”, “Guerra e Paz”. Achavam que eram livros
comunistas, subversivos. Hoje, 40 anos depois, e não se espantem com minha
afirmação, acho que eles tinham razão: ninguém sai igual de um encontro com
estes autores que nos contam coisas do humano. Todos somos “subvertidos”
nesse encontro. Com esta história podemos começar a perceber a educação –
como ato, como acontecimento educativo, como encontro educacional que
subverte (muda as coisas de lugar). Como algo muito diferente de condicionar
e punir. Como algo que amplia, quebra o isolamento, a indiferença, liberta.
Outra história que pensei em contar, para ilustrar a possibilidade de outro
sentido da educação, é um trecho de uma entrevista com nosso grande poeta e
músico, TOM ZÉ. Na entrevista ele conta: “Aí a professora de português,
professora Belmira, um dia disse uma coisa comovente, um negócio assim:
“Vocês têm que aprender português” – aquela professora miudinha, negra,
sentada naquela cadeira enorme, parecia sumir ali, mas ela era de um vigor! Eu
não pensava em escrever nem fazer música nem nada, mas ela disse o
seguinte: “Vocês têm que aprender português. De onde é que vão sair os
escritores e os poetas?”. Ora, só ter uma expectativa boa sobre mim, mesmo
como coletividade, era um bálsamo. Eu fiquei com os olhos mareados lá no
fundo da sala.” (FOLHA DE SÃO PAULO, MAIS!, 12/10/2003, p. 7) Temos, nesta
singela história, protagonizada diariamente por tantos (e tantos) professores
por este Brasil, algo que podemos recuperar para dar o sentido que queremos
mostrar de uma educação que se opõe, que subverte, que liberta, que tira de
um lugar estigmatizado ou pobre, que permite imaginar um futuro.
Outra história que lembrei, vai no mesmo sentido. Cito, no caso, Ferrez, autor
de “Capão Pecado”, que diz como sua vida mudou depois que leu Mme. Bovary,
de Flaubert. Vocês dirão: que improvável que a vida de alguém mude lendo
este livro, hoje tão “fora de moda”! Como um rapaz do Capão poderia se
interessar? E lá, ele encontrou a forma de construir “pontes”. Pois educação é
isto, a possibilidade de construir pontes que permitam circular, sair do
isolamento. Novamente, ampliar o mundo, aumentar a possibilidade de dar
novos sentidos às palavras, encontrar as palavras para dizer o que nos
acontece.
Nestas histórias vemos: a potência da educação para ampliar o mundo,
quebrando a cultura do isolamento.
Quando se estuda o perfil dos crimes violentos e os perfis dos criminosos,
vemos que estão aprisionados (muito antes de irem para a prisão) em relações
muito estreitas, muito pequenas, em mundos sem oxigênio, sem ar. Pensem
nos casos mais divulgados, de Brasília, no Rio de Janeiro, as brigas nas boates.
Pensem nos crimes entre marido e a mulher, o filho e o pai, nas histórias dos
vizinhos que se matam. Pois a violência é uma forma de resolver um conflito.
Estes conflitos, para nós, banais, pareciam aos envolvidos tão grandes! Nos
choca a verificação de que todas as mortes urbanas são inúteis, fúteis, não
eram necessárias, não precisariam ter acontecido. Clamamos pela importância
da educação na ampliação do mundo. É fundamental para relativizar aquele
conflito que pareceria tão enorme.
Estamos falando de educação como potência, como ampliação, como expansão,
como ruptura do isolamento, da indiferença, como liberdade. Estamos
pensando na educação como possibilidade, como subversão, como
perplexidade, como curiosidade sem fim, como reverberação. Como
acontecimento.
Educar na tensão entre as possibilidades
É nesta tensão que se encontra a educação. Que se realiza a educação.
Não que esteja pensando na educação como a salvadora, a libertadora.
Não me esqueço da relação entre educação e cidade. Se trata de construir a
cidade e construir a escola.
Minha proposta é deixar de pensar de uma vez por todas a educação como
estando no “céu” ou no “inferno” e pensá-la estando firmemente refletindo as
mudanças e conflitos da sociedade contemporânea. É pensar a educação no
mundo. A educação na cidade. Proponho pensar educação – não mais como a
que salvará a democracia ou o mundo (pobres de nós, professores), não como
o locus privilegiado da revolução – nem como o lugar perverso da reprodução,
e sim como um lugar que repercute o tempo todo as contradições mais gerais
da sociedade e que é capaz de criar respostas originais a estas contradições. É
perceber o poder da educação em transformar vidas concretas, lugares
concretos, mundos concretos e seu poder de confirmar destinos sociais de
pobreza.
A proposta é de uma educação com um olhar sobre o mundo, que permita que
este mundo se transforme em nosso mundo, que possamos construir narrativas
coletivas sobre nossa história em nosso mundo.
Lembrando sempre que a educação pode fazer muito. mas não pode fazer
tudo: há mudanças mais profundas, mudanças estruturais necessárias, que
permitirão que não se prometa inutilmente, que se pare de fazer promessas
que novamente serão descumpridas.
A educação tem poder, tem potência: é um dos lugares que pode participar da
mudança, junto com outras instituições, trabalhando no sentido de romper com
o círculo das condenações precoces, no sentido de empoderar, ampliar o
mundo das pessoas.
Na cidade.
É possível pensar, portanto, numa educação que nos tire do isolamento, da
solidão. que se realize como direito humano que é. Universal, profundo,
igualitário.

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